quarta-feira, 4 de abril de 2018

Sentindo a música

 Último estágio para quem é eterno* aprendiz : sentir a música, e não pensar em padrões técnicos, harmonização coerente ou expressão de habilidade.




         
             Muitos alunos e amigos  me perguntam o que é feeling (sentimento, e algo a mais) na música, e como adquiri-lo. Há quem o traduza como intuição, como insight, e há quem diga que o conceito não tem tradução satisfatória. É mais fácil às vezes indicar alguma apresentação do Tom Schuman ou David Gilmour, ou o B.B. King. com seus bends de semibreve nas cordas de tensão 0,12 ... ou todo o conteúdo das composições de Paganini, os riffs nos vocais da Lara Fabian ou até as frases de Frank Gambale e de Pat Martino pós-amnésia. Com eles vemos o resultado visual e sonoro de gênios e virtuoses, que debruçaram-se uma vida toda sobre os estudos e/ou toda espécie de experiência musical, e chegaram a um ponto comum, mesmo sendo tão diferentes: o "sentir" da música dominou e associou todo o conteúdo teórico e técnico, e os elevou à capacidade que está acima de um músico prático. Ah, virtuose não tem a ver com ser muito rápido ou muito lento, mas com a precisão e a sinceridade.        
           Praticamente qualquer pessoa pode pegar um instrumento e tocar, e gravar e fazer shows; mas poucas delas amadurecerão a ponto de obter uma musicalidade transcendente.
            
            Um caminho que eu geralmente indico para os estudantes conhecerem isso na prática é começar a ouvir (analiticamente) músicas onde o canal destacado NÃO é o que se está estudando. E, mais além, começar a transcrever ou aprender fraseados de instrumentos muito diferentes do seu. Por exemplo: um estudante de guitarra fazer uma pausa nos shreds e começar a ouvir e tentar tocar frases dos metais, saxofone, trompete, etc. Miles Davis, Michael Brecker, etc.

           Mas porquê fazer isso
?
           Quando se aprender a ouvir e tocar material de outros instrumentos, rompe-se a limitação "geográfica" do seu instrumento de estudo, pois as digitações diferentes vão favorecer muito, mas muito mais a valorização dos sons, das notas. E com isso florescer o senso de musicalidade que ultrapassa seu instrumento, e o encontro com a música em seu caráter mais poderoso é inevitável.
            Penso que a criatividade por meio da "voz" de cada instrumento é só uma parte, um exemplo, do que podemos fazer. O contato com os toques criativos de instrumentistas diversos faz crescer o entusiasmo, o diferencial de fraseado e de raciocínio musical.         

          Quando vemos músicos fazendo caras&bocas, o ato na prática parece tão ridículo para quem ainda está leigo na música; mal sabe o leigo que esse é um dos "sintomas" do feeling! Um êxtase musical naquelas micro-passagens geniais entre um final de refrão e o começo de um solo, quando se improvisa as ligações entre os acordes, usando alguma técnica, uma tensão, dissonância, blue note, outro acorde....ou aquele trecho carregado de sentimento, usando velocidade em uma frase complexa repentina e não ensaiada, ou um dueto com vibrato que rasga a harmonia e dramatiza o momento musical: algo pensado rapidamente, que sai naturalmente, e a recompensa sonora pelo funcionamento primoroso daquilo promove um gesto facial de euforia e sensação de recompensa (recompensa pelos anos de estudo, pelo domínio do instrumento, pela criatividade estimulada). Tudo isso acontece num milésimo de segundo.Mas será que a fagulha foi mesmo o pensamento ? Penso que às vezes não.
.
             O conceito de feeling transcende realmente tudo que se possa escrever ou teorizar. Na prática, ele passa percebido e nos faz atingir o êxtase musical, que alguns crêem que seja advindo do mundo espiritual, de Deus,da árvore musical, das mônadas, etc.
           Por isso o estágio final do músico é o Sentir. Sentir o que se está fazendo na música, com consciência, entender o que a música está pedindo, e perceber que o instrumento é um mediador, e não um condicionante do feeling, o que mais uma vez requer que conheçamos música, e não só instrumentação! E, claro, precisamos ter um ótimo domínio técnico do instrumento para que ele possa atender nossas necessidades criativas (é terrível num improviso pensar em fazer algo que soaria muito legal, e não ter capacidade técnica pra executar). Isto envolve dinâmica, técnica, ritmo, conhecimento.
            Por isso penso que o último estágio do músico é o sentir. E isso vem com a experiência, como produto do caminho que escolheu. Nunca deixamos de ser aprendizes, então o estudo musical deve ser constante, mas esse amadurecimento traz sentido à tudo, e dá a visão da totalidade da música - não por entender tudo sobre ela, mas por saber seu lugar na infinidade de possibilidades e informações. Acho que isso determina o que é um bom músico, mais pra si mesmo do que para todos os outros. A satisfação pessoal é impagável.

* Mas se é eterno, como tem um último estágio? Esse é um "koan". Tente responder a si.